Só que a ideia de Warren Spector não foi simplesmente resgatar o clima de escotismo das películas antigas. Tampouco envolve lançar o rato em um desbaratado jogo de ação do tipo que é facilmente esquecido. Epic Mickey faz jus ao seu nome: trata-se de um universo épico, com requintes que vão do detalhamento dos ambientes ao conteúdo emotivo de boa parte das cenas que ambientam o desolado “paraíso” ocupado pelos rejeitos da Disney.


Epic Mickey é uma jornada até os recôndidos mais escondidos da infância da maioria dos jogadores que hoje começam a perder cabelo — sim, existia entretenimento antes de Naruto e Ben 10. Em mais de 80 anos de existência, o emblemático rato protagonizou tantos desenhos animados e quadrinhos que você teria que ser um eremita completo para dizer que não é nem um pouco escolado na filosofia de “boa vizinhança” do ícone maior da Disney.

Img_normal De fato, Wastelande não é um lugar que se deixa sem impressões fortes. Cada canto empoeirado, cada brinquedo enferrujado e cada personagem secundário afundado no rancor de ter sido deixado de lado — até mesmo Horácio, outrora um coadjuvante respeitável, acabou por ter que arrumar um bico como detetive particular na agourenta Mean Land; tudo evoca certa mistura emocional embalada por uma trama ao mesmo tempo rica e acessível.
Mas fornecer uma cosmologia às avessas para um universo dos mais reconhecidos não é o único feito louvável da estreante Junction Point Studios.

Epic Mickey ainda resgata a faceta heroica de um personagem que há um bom tempo andava apenas enfeitando lancheiras e servindo como emblema para o império de Walt Disney. A mensagem aqui é: sim, Mickey pode ser um ótimo herói, reforçando valores e uma conduta de vida pacífica e altruísta... Ou não.

Aprovado

Com vocês... Oswald?!
Epic Mickey não é nem um pouco comedido ao contar as desventuras do herói através da inóspita e sucateada Wasteland. Para compor a história que embala as coisas aqui, o lendário Warren Spector revolveu chafurdar profundamente no baú empoeirado dos rejeitos da Dysney, de onde saltaram personagens esquecidos, locais abandonados, concepções artísticas preteridas, etc.


Mas talvez o principal elemento levantado nas buscas do designer seja Oswald The Lucky Rabbit. Para quem não conhece (a maioria, é claro), trata-se do primeiro ícone criado por Walt Disney. A ideia era produzir desenhos curtos do personagem juntamente com os filmes da Universal Studios durante décadas de 20 e 30. Entretanto, graças a questões contratuais, Walt Disney acabou perdendo os direitos sobre o personagem, o que demandou a criação de um novo ícone. Surgia então Mickey Mouse.
Parece pouco, mas a ideia acima sintetiza toda a concepção emocional e estrutural de Epic Mickey. Oswald jamais conseguiu lidar adequadamente com o abandono do seu criador (que assume uma figura realmente paterna durante a trama). Acrescente a isso o fato de Mickey ter um papel central na criação do caos inóspito de Wastland, e o resultado é uma trama das mais memoráveis que já se viu em jogos da sétima geração.

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Herói clássico ou protagonista mesquinho?
Talvez um dos pontos mais distintivos de Epic Mickey seja a pergunta que é endereçada constantemente ao jogador: “Qual dos Mickeys você é?”. Afinal, qualquer um que resolva fuçar nos primeiros desenhos do rato provavelmente vai reparar que o hoje amigável personagem da Disney não era exatamente o mais altruísta dos sujeitos. Não que fosse realmente “bom” ou “mau”; era simplesmente um sujeitinho divertido e egoísta.

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 Com o passar dos anos, Mickey foi se tornando mais e mais politicamente correto e abnegado, tornando-se a figura quase insuportavelmente alegre e gentil que é hoje mundialmente conhecida. Ao final, cabe a você decidir com qual das versões do herói se identifica mais.
Essa orientação se dá através das escolhas morais que são constantemente impostas ao protagonista. Você vai resgatar os benfazejos goblins de suas jaulas? Vai provar a inocência de um arrependido Bafo de Onça? Prefere destruir ou redimir os inimigos caricatos que pululam pelos cenários devastados de Wasteland? Enfim, há sempre uma escolha — embora a distinção entre “bom” e “mau” fique bastante clara na maior parte dos casos.
 
Fases de ligação

Cartoon Wastland é vasta, cheia de cenários distintos, nacos de histórias abandonadas, personagens carrancudos em busca de ajuda — alguns com ímpeto verdadeiramente destrutivo. Naturalmente, você terá que viajar entre as diversas localidades do jogo. E é aí que surge um dos pontos mais criativos de Epic Mickey.
Atravessar de uma fase para outra do jogo é tão divertido quanto assistir a um desenho antigo da Disney. Na verdade, é exatamente isso que essas fases são. Ao encontrar o final de uma fase, Mickey pulará para dentro de um projetor onde são exibidos clássicos como “Alpine Climbers”, de 1936, ou “Clock Cleaners”, de 1937 — curta estrelando Oswald the Lucky Rabbit. Nesses momentos, a riqueza tridimensional do jogo é abandonada por um divertido e descompromissado side-scrooler em duas dimensões.

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E algumas dessas fases realmente chamam a atenção, como a versão jogável de “Plutopia”, desenho de 1951 inteiramente baseado em um sonho de Pluto: salsichas a granel, bistecas e um gato masoquista... Deve soar familiar para qualquer um com um “pouco” mais de idade.

Mad Max encontra a Disneylândia

Sem meias palavras: Cartoon Wastland é fruto de uma das melhores direções de arte da atual geração de consoles. A genialidade de Warren Spector criou aqui um universo que, embora seja prontamente reconhecível, traz elementos sombrios, capazes de evocar a ideia de algo desgastado abandonado em todas as texturas e em cada personagem apático.
A impressão final é mais ou menos o que resultaria de um encontro improvável entre Mad Max e o que sobrou da Disneylândia. Tudo é desgastado, puído, abandonado ao sabor do tempo. Desde os parques de diversão temáticos com brinquedos despedaçados até a agourenta Mean Street — que serve como elo de ligação entre as fases do jogo. E a explicação para tanto é igualmente genial e dolorosa: Oswald tentou recriar o universo colorido da Disney com os parcos recursos que tinha à mão.

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E isso inclui até mesmo personagens do primeiro escalão da produtora. A fim de aplacar a sua terrível solidão, Oswald construiu em Cartoon Wasteland versões “animatrônicas” de alguns dos maiores ícones da Disney, como o Pato Donald. Embora você não necessariamente precise lidar com esses personagens, trata-se de mais uma das possibilidades de escolha moral de Epic Mickey — vender as carcaças por prêmios ou mostrar alguma compaixão?

É sempre possível revisitar Cartoon Wasteland

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 Embora  a trama central de Epic Mickey seja particularmente memorável, a arquitetura vasta e portentosa de Epic Mickey não existe apenas para uma única história. Cada cenário visitado pelo herói pode incluir diversos itens escondidos ou ainda formas diferentes de se resolver o mesmo problema.

Completando a longevidade do título, ainda pode ser uma boa ideia atravessar mais de uma vez a campanha de cerca de 15 horas, a fim de desvelar todos os finais possíveis — com base nas escolhas morais que são feitas durante a história.

  Um belo trabalho de Jim Dooley

A composição das músicas de Epic Mickey é sem dúvida um espetáculo à parte. Embora as faixas que ambientam o jogo tragam lembranças imediatas dos clássicos da Disney, o compositor Jim Dooley — o mesmo por trás de “Simpsons, O Filme”, “Piratas do Caribe: No Fim do Mundo”, entre outros — soube mesclá-la perfeitamente, infundindo nas melodias clássicas elementos que tornam o produto final mais... Apropriado para o clima de Cartoon Wasteland.

Reprovado 

Um inimigo mais temível que o próprio Mancha Negra


A perspectiva é aqui um dos seus piores inimigos, sem sombra de dúvida. A ação das câmeras em Epic Mickey beira o intolerável, posicionando-se atrás de obstáculos, girando sem prévio aviso ou simplesmente enfocando qualquer coisa menos os ataques do inimigo. Warren Spector afirma que se trata apenas de um “mal-entendido”... A maioria dos humanos simplesmente encontrará mais um jogo com câmera ruim.

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A velha falta de precisão do WiiMote...

A mecânica de Epic Mickey é de fato criativa: munido apenas de tinta e solvente, o herói deve reconstruir ou apagar completamente elementos dentro de Wasteland — trata-se ainda de um fator fundamental dentro das escolhas morais do jogo. O Problema é que essa concepção acaba batendo de frente com a considerável falta de precisão dos controles do Wii.
Embora seja tolerável durante as primeiras fases do jogo, o controle precário da mira do pincel de Mickey acaba se tornando um verdadeiro problema conforme mais e mais desafios vão aparecendo simultaneamente dentro de uma mesma fase. Aí surge a escolha: a história é suficientemente interessante para que você ignore essas derrapadas?

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Alguma lentidão

Não que Epic Mickey apresente quedas de fps (quadros por segundo) tão evidentes. Mas sim, há aqui alguma lentidão, sobretudo nas cenas mais abarrotadas de inimigos simultâneos e elementos de cenário. Nesses momentos, o melhor é incorporar o bom humor do Mickey Mouse...

Por que não frases inteligíveis?

Os diálogos em Epic Mickey são uma espécie de ode ao estilo cômico de Banjo-Kazooie, algo que provavelmente seria muito bem vindo a uma ou duas gerações atrás. Trata-se de uma série de murmúrios e ruídos que acompanham as frases em texto. Embora tenha seu charme, não seria nada mal contar com frases inteligíveis durante as belas cenas de corte do jogo.

Vale a pena?

Epic Mickey traz um dos cenários de jogo mais bem orquestrados da atual geração. A inóspita Wasteland é capaz de infundir um sentimento de abandono único ao fazer a pergunta: “E se as criações abandonadas durante anos de superproduções Disney tivessem vida própria?”. A empreitada da Junction Point Studios ainda faz um belo trabalho ao devolver Mickey para a sua faceta heroica original — mesmo não sendo moralmente correto o tempo todo.


A mecânica de jogo também deveria pesar na balança, não obstante os problemas de precisão dos controles do Wii. As implicações morais de se “pintar” ou “apagar” de vez os rejeitos encontrados no paraíso perdido de Oswald The Lucky Rabbit — este próprio um dos personagens mais estranhamente carismáticos do título — dá uma coloração perfeita à experiência, transformando a jogabilidade e a história de Epic Mickey em uma coisa só.
 Sim, existem alguns problemas, e talvez nem todos os jogadores possam concordar com Warren Spector quando este afirma que “Epic Mickey é o jogo mais belo do Wii”. Entretanto, qualquer um cuja infância tenha sido preenchida com elementos do panteão da Disney deveria dar uma boa conferida na leitura tão pesarosa quanto original de Epic Mickey.