Os video games se transformaram em um meio singular de se contar histórias. A interatividade e imersão proporcionadas pelos jogos eletrônicos criaram uma nova mídia capaz de oferecer tramas elaboradas e flexíveis, nas quais o leitor/jogador/espectador é parte ativa da história.
Quando você lê um livro, pode imaginar novos cenários ou se ater a detalhes a cada nova leitura, porém a história segue imutável. O mesmo ocorre com filmes e até mesmo em músicas ou qualquer outra forma de se contar histórias.
Os eventos são encadeados sempre da mesma forma, dentro das mesmas circunstâncias e regulados pelo mesmo cronograma.
Além disso, você sempre tem a exata percepção de que, como leitor ou espectador, você está fora da trama. Ou seja, você não faz parte da história e, portanto, não pode alterá-la.
Nos video games, entretanto, as coisas são diferentes. Você está efetivamente dentro da história, comandando um personagem dentro do universo da trama. Além disso, a maioria dos jogos o coloca diretamente no papel do protagonista, a pessoa que está no centro da narrativa.
A mecânica criada por esta dinâmica proporciona uma ligação emocional muito mais próxima entre o jogador, o personagem e todo o universo do jogo (e consequentemente da história contada). Em suma, os jogos são um novo meio de se contar histórias — e na prática também criam histórias que não poderiam ser contadas em outras mídias.
Jogando a históriaQuando jogar vira parte da históriaOs video games também contam com outro recurso narrativo próprio, a jogabilidade. O sistema de controles e as possibilidades de ações dentro do jogo estabelecem formas de se contar a história, e de criar novas narrativas, dentro de um mesmo título.
Conforme você interage com o cenário e outros personagens dentro do jogo novas ações, interações e eventos são desencadeados contribuindo para o clima e, na maioria dos casos, para o próprio desenrolar da fábula.
Esta estrutura fica mais evidente em títulos de terror e suspense, quando o jogador investiga determinados elementos do cenário e é recompensado com um susto. Na prática não houve uma contribuição significativa à trama, mas a ação ajudou a criar um clima de tensão que governará suas próximas ações dentro do jogo.
Criando a própria históriaNarrativas emergentesTambém não podemos deixar de lado a flexibilidade das narrativas emergentes (sem roteiro pré-definido). O conceito não é novidade, e anda em voga no mundo das artes audiovisuais por conta do advento das redes sociais.
Todavia, no contexto dos video games, a ideia de narrativas emergentes ganha nova forma e significado. As principais teorias narrativas não são exatamente aplicáveis ao sistema, na realidade uma narrativa emergente é justamente algo que não está dentro do padrão narrativo.
Trata-se de algo que se constrói através da interação entre várias estruturas com maior ou menor nível de abstração... Hã?
Simples, imagine uma partida multiplayer de Call of Duty. Não há exatamente uma trama movendo as ações dos participantes, no entanto, você cria uma história enquanto joga e interage com os outros personagens e jogadores.
Para deixar tudo ainda mais claro faça o seguinte: tente narrar os eventos de uma partida qualquer para os seus amigos. Você certamente já deve ter compartilhado seus feitos com colegas, contando suas proezas no campo de batalhe de Call of Duty ou Counter-Strike.
 Ou quem sabe aquela vez em que você contou para turma sobre como sobreviveu por dez minutos a uma perseguição de nível cinco em Grand Theft Auto IV. Dirigindo desenfreadamente pelas ruas de Liberty City, disparando tresloucadamente contra as viaturas policiais, escalando edifícios e se entrincheirando no topo de uma torre.
É uma história criada a partir das suas interações dentro do mundo de jogo, mas ela não está exatamente inserida na trama principal.


Histórias digitaisGrandes jogos, 

grandes históriasMesmo que os livros, filmes e quadrinhos ofereçam muita inspiração, os video games já produzem material próprio e de alta qualidade. A maioria dos títulos possui tramas interessantes, entretanto, como nos livros e filmes, algumas são envolventes e outras não passam de “goma de mascar” — descompromissado e descartável.
No entanto, praticamente todos os grandes jogos conseguiram criar histórias inesquecíveis, com mundos fantásticos, mitologias complexas e personagens carismáticos. E como os jogadores podem interagir com vários elementos da trama, o envolvimento com a história se torna ainda maior.
Se você busca por uma boa história, o Baixaki Jogos tem algumas sugestões. Não se trata de uma lista fechada, muitos jogos importantes não aparecem aqui, trata-se apenas de cinco exemplos de como os video games podem contar histórias fortes de maneiras diferentes.

 Conspirações, espionagem e muita tecnologia

 A história começa em tom nada diferente de grande parte dos filmes do gênero. O agente secreto de codinome Solid Snake é retirado de uma merecida aposentadoria para resolver uma crise no Alasca. Aparentemente, uma equipe de supersoldados virou a casaca e invadiu uma base secreta do governo para roubar armas nucleares.
Ao longo da sua missão, Snake descobre que o homem por trás do grupo terrorista é o seu irmão gêmeo Liquid Snake. Para piorar tudo Snake ainda fica sabendo que ele e Liquid são na verdade clones de outra pessoa e que seu “irmão” pretende roubar uma arma chamada Metal Gear.

 A tensão aumenta na medida em que Snake não pode confiar em ninguém, nem mesmo em alguns de seus supostos aliados. Este clima de incerteza e ambiguidade moral é o cerne de Metal Gear Solid e suas continuações.
Os mocinhos e bandidos se confundem quando a linha que os separa é “borrada” por eventos maiores. As motivações dos seus inimigos não são unidimensionais e muitas vezes eles só estão do lado “oposto” por terem desvendado a verdadeira crueldade dos mocinhos da história.
A franquia Metal Gear Solid possui uma narrativa envolvente e extremamente complexa que explora novas facetas de seu universo a cada edição. Se o material original já é bom, a forma como ele é apresentado ao jogador é ainda melhor.
Sequências de animação exuberantes e diálogos no meio da narrativa desatam os nós da trama aos poucos revelando uma história muito maior do que imaginada. No meio disto ainda temos personagens carismáticos, antagonistas que adoramos odiar e uma jogabilidade precisa.



 Film noir desossado 

Em Grim Fandango a morte é apenas o início de uma grande jornada. Os recém-falecidos são classificados de acordo com a sua vida e seus “agentes de viagem” lhes entregam um meio de transporte para o pós-vida.
Alguns vão de carro, outros de barco, os mais puros recebem uma passagem de trem que encurta a jornada para apenas quatro minutos, enquanto os pecadores são obrigados a fazer todo o percurso a pé, levando no mínimo quatro anos para chegar ao destino final.
Manny Calavera é um “ceifador” — um dos agentes de viagem que auxiliam os mortos. Cansado de só receber clientes pequenos, Manny resolve “roubar” um contrato mais interessante de um agente rival. Segundo o contrato Manny deve mandar a Srta. Mercedes "Meche" Colomar fazer a

 longa jornada a pé, mas algo não cheira bem.
Quando Manny resolve investigar o porquê Meche não recebeu a passagem de trem ele acaba desvendando uma grande rede de corrupção dentro do mundo dos mortos. Ao lado de seu amigo demônio Glottis, Manny descobre que seu chefe está roubando os bilhetes e vendendo eles no mercado negro para um gangster local.
O cenário insólito é pano de fundo para uma grande homenagem aos maiores clássicos do cinema noir. A história aproveita os clichês do gênero inserindo-os em um local totalmente novo e criando algo verdadeiramente único.
A atmosfera é o grande trunfo de Grim Fandango. A mistura peculiar de clássicos como “Casablanca”, “O Falcão Maltês” e “À Beira do Abismo” com folclore mexicano e a celebração do Dia dos Mortos é algo realmente fantástico.
Se isto não fosse o bastante ainda temos o roteiro afiado e o humor singular de Tim Schafer — criador de Full Throttle, Maniac Mansion, The Secret of Monkey Island, Psychonauts e Brütal Legend.
Schafer amarra com muito cuidado uma envolvente história de gângsteres — com pitadas de romance e diálogos bem humorados repletos de ironia — em meio a um cenário totalmente tresloucado.



 "Um homem escolhe, um escravo obedece."
Na década de 1940, Andrew Ryan — um empreendedor visionário — resolve criar uma metrópole utópica no fundo do oceano Atlântico. Em Rapture, uma cidade-estado livre de interferência governamental e convenções sociais, ele e outros cientistas mentalmente “arrojados” poderiam explorar fronteiras nunca dantes pesquisadas.
Infelizmente, o sonho de Ryan não acabou muito bem. Comercialismo desenfreado deu lugar ao crime, estratificação social e à guerra civil. A fala de regulamentação científica originou perversões genéticas e outros horrores. Com o tempo, Rapture se transformou em uma cidade em ruínas, porém homens ainda lutavam pelo seu controle.
Ryan, o fundador, pretende restaurar seu sonho, enquanto Atlas, seu opositor político, prevê novos rumos para a cidade. Ao mesmo tempo, Fontaine — chefe da máfia — e a Dra. Tennenbaum, responsável pelas mutações genéticas que infestam a cidade, também lutam pelos seus interesses.
 Alheio a tudo isso, você sofre um acidente de avião e acaba caindo nas proximidades de Rapture — no meio do oceano Atlântico. BioShock surpreende com uma história muito inteligente que faz referências à filosofia, política, ética, ciência e muito mais.
Os personagens são multifacetados, suas psiques e motivações podem ser traçadas de volta a grandes nomes como Ayn Rand, George Orwell e até mesmo Walt Disney. São inúmeros arquétipos e influências escondidos, ou aparentes, dentro de todo o jogo.
Não estamos falando de uma história de ninar, trata-se de algo muito trabalhado com nuances que podem passar despercebidas ao olhar mais desatento. Porém o brilhantismo está justamente no fato de que tudo isso não são os elementos mais atraentes de toda trama.
A cidade de Rapture em si, acaba se tornando um personagem. A imponência da construção e o estilo art déco criam uma personalidade que cativa o jogador a cada novo cenário. Sem contar a presença dos assustadores Big Daddys e das sinistras Little Sisters que perambulam pelos corredores alagados de Rapture.
Mas, a grande atração fica por conta do protagonista. Aparentemente desprovido de traços marcantes a figura sem rosto não é nenhuma novidade no mundo dos jogos de tiro. Além disso, o fato de você ser um mero estranho que acaba caindo neste fantástico mundo submerso aumenta ainda mais o impacto da ambientação e dos outros atores da trama.
Pelo menos é o que você pensa até a reviravolta final. Para não estragar a conclusão da história para os menos avisados, digamos apenas que o jogo constrói uma história incrivelmente envolvente que tem uma guinada radical e perturbadora.




Deicídio virtual
A mitologia grega é uma rica fonte de inspiração para vários filmes e livros. O constante conflito entre deuses e a suas relações com os humanos renderam poemas épicos como a Ilíada e a Odisseia. Em God of War a história é original, não aparece em nenhuma lenda ou conto da mitologia grega, porém parece ter saído diretamente de um anfiteatro de Atenas.

A trama gira em torno dos feitos de um soldado espartano que resolve se vingar dos deuses. Kratos, um simples mortal, pede ajuda a Ares para combater uma horda de bárbaros invasores. Todavia, Ares engana Kratos que acaba matando sua mulher e filha.
Atormentado com o acontecido, Kratos tenta pagar seus pecados trabalhando como “servente” dos deuses. Poseidon, rei dos mares, envia o faz-tudo do Olimpo para matar Hidra enquanto a deusa Atena — uma das poucas que parece realmente se preocupar com o mortal — pede que ele proteja a sua cidade, Atenas, de um ataque de Ares.


 Unindo o útil ao agradável, Kratos encontra a oportunidade perfeita para se vingar de Ares. De posse da Caixa de Pandora, o fantasma espartano consegue finalmente matar o deus egocêntrico tomando para si a Lâmina dos Deuses (Blade of the Gods) e o cargo de deus da Guerra.

A narrativa possui uma das construções mais simples possíveis. A mitologia grega serve de pano de fundo para uma história com temas comuns como vingança e a relação do homem e Deus (no caso deuses).
No fundo a história de God of War não é tão original quanto à de outras produções, mas a combinação de todos estes elementos e a presença de um protagonista forte (não apenas fisicamente) como Kratos fazem toda a diferença.
O anti-herói fortão não é impactante por si só — afinal fortões silenciosos existem aos montes nos video games — o que diferencia Kratos é a sua história trágica e total falta de alegria. Para quem não lembra o jogo começa com Kratos tentando se matar, por pensar que os deuses o abandonaram.
Toda a trama é apresentada como as lembranças finais de um homem que se atirou para a própria morte. Kratos confiou nos deuses e em troca foi induzido a matar sua família. Ele luta por vingança, mas no final, mesmo depois de vitorioso ele só encontra o tormento do passado.




  A esposa de James Sunderland acaba de enviar uma carta pedindo que seu marido a encontre em um lugar muito especial para casal. O único problema é que Mary, a mulher de James, está morta há três anos.
Levado a investigar a origem da carta, James segue até Silent Hill, uma cidade pacata que ele e Mary haviam visitado pouco antes da doença finalmente tolher a vida de sua amada. Ao chegar lá, muita coisa mudou. As construções típicas deram lugar a paredes de carne e monstros deformados.
As poucas pessoas aparentemente humanas presente na cidade não parecem muito preocupadas com o cenário distorcido em que se encontram. Figuras tão perturbadas quanto o local apenas aumentam o mistério por trás da carta enviada por Mary do além-túmulo.

Procurando por respostas, James aprofunda-se cada vez mais em um mundo sombrio repleto de perversões, incluindo o que parece ser uma versão altamente “sexualizada” da sua esposa e um homem misterioso com espada gigantesca (Pyramid Head).

Quando mais você afunda nos horrores de Silent Hill mais evidente fica a verdade por trás do que realmente está acontecendo. Todo o tormento presente no game é na verdade reflexo da agonia de James por ter matado a sua esposa.
Em uma reviravolta digna de filmes como “Alucinações do Passado”, “Psicose” e “A Ilha do Medo”, James percebe que Silent Hill é um purgatório mental criado por ele mesmo para esconder e punir o seu grande pecado.
Silent Hill 2 estabelece o suspense desde o início, com uma premissa intrigante — a esposa falecida envia uma carta para o marido. A ambientação reforça o medo com um clima constante de que algo ruim o aguarda a cada esquina.
As metáforas de Silent Hill fazem mais barulho e são mais assustadoras do que qualquer zumbi de Resident Evil. Vasculhar a cidade significa imergir nos conflitos de uma mente destruída, capaz de criar monstros e outros horrores para ocultar de si mesmo uma verdade terrível.
O simbolismo por trás de cada personagem, cada criatura é expressivo e revela indícios do que está acontecendo por trás do véu. A culpa carregada por James produz manifestações de pesadelos terríveis que perambulam por Silent Hill.
Silent Hill 2 não é uma história de redenção, James encara demônios que perturbam não apenas a mente dos culpados. Trata-se de um conto sobre assassinato, suicídio, sanidade, aceitação e outros temas ainda mais obscuros e perturbadores.